quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Crônica de um apagão

Fiquei no escuro? Claro que fiquei no escuro, e como faz falta um pouco de luz em nossas vidas, mesmo que por apenas algumas horas, é desesperador para alguns, poesia visual para outros e simplesmente comédia para uns e outros.

Eu, como um ser perfeitamente urbanizado, morador do centro, pude presenciar, notar, imaginar, entender, subentender e participar de um dos momentos improváveis e extraordinários que envolvem a vida, do tipo que marca, sabe? Mesmo sendo apenas uma bobagem para a grande maioria, ainda há um pouco de sensibilidade para detalhes dentro dessa casca oca e repugnante que circula por aí.

Resido no 29° andar, no escuro a visão vai além, assim como todos os instintos de percepção. O escuro revela novas formas, imagens surgem em meio ao nada, imagens que sempre estiveram ali, ofuscadas pelo universo iluminado da cidade, mas não dessa vez! Dessa vez puderam brilhar para quem teve a oportunidade de prestar atenção.

Luzes de emergência piscavam em alguns prédios, transformando a paisagem em um imenso pisca-pisca como utilizados em árvores de natal e enfeitam sacadas, a confusão no transito, em diversas vias, de longe se podia ver um imenso corredor de luzes, brancas, amarelas e vermelhas, em vários pontos da cidade fazendo uma festa particular involuntária, proporcionada gratuitamente pelos faróis dos carros. Havia estrada onde eu sempre imaginei que não havia nada. Sempre imaginei o oculto da cidade, mas nunca pude prestar atenção como pude na noite de ontem (10/11/2009).

De um prédio, um grito, partindo de alguém invisível "Ae, acende a luz ae cacete, tá escuro aqui", outro invisível grito de outro prédio respondia "não dá, acabou a energia, acho que você não percebeu". Humoristas obscuros se pronunciando para sua imensa platéia invisível. Saudosistas "Que saudade da Light!", prontamente respondidos "Cala a boca ae, aqui é Maluf" e retrucados no ato "Maluf e Lula é tudo igual, pergunta pro Kassab ali na prefeitura" “Vai Palmeiras". Gritos que ecoaram pela noite realmente escura sem interrupções, para deleite ou ira dos espectadores, também anônimos.

Pude notar também o rebolar das velas refletindo em janelas distantes, e o imenso fogaréu da usina Petroquímica tocando o céu. Por um momento pensei se tratar de um grande incêndio, possível causador de toda confusão, que não é confusa, apenas diferente dos costumes e padrões elétricos ditados pelo progresso.

São tantos os detalhes que transcenderam a si mesmos, um festival do verdadeiro underground acontecendo para quem quisesse se aventurar. Posso imaginar o que cada pessoa atravessando a rua, no apartamento ao lado, nas janelas do prédio em frente, estava pensando, reclamando ou fazendo. Um verdadeiro circo de sensações, atrações particulares direcionadas ao escuro. Zilhões de ligações para reclamar, instinto básico do cidadão moderno, reclamar de tudo, talvez para preencher um pouco o vazio interno, ou apenas por distração, mas por um momento os celulares também não funcionavam, ponto para o personagem principal dessa pequena crônica. Lasers, atualmente proibidos, dançaram livremente pelos prédios, mostrando sua força e beleza em projeções de inúmeros tamanhos.


Uma diversão, uma experiência na verdade, não vivida pela primeira vez, no meu bairro de infância, sempre que faltava luz, todas as crianças saíam de suas casas para celebrações e brincadeiras pelas ruas escuras. Quando voltava a luz todos moradores do bairro comemoravam em coro com o mesmo grito. Foi enorme a comemoração da chegada da luz, talvez por saudade da TV, da Internet, farra, ou sei lá, tenho que confessar que gostei de reviver essa experiência. Sozinho, da escada de incêndio externa do prédio onde resido, eu pude notar coisas imperceptíveis, ouvir sons inesperados, resmungos e piadas ecoando de autores invisíveis, mas que irão se gabar pelo feito em seus trabalhos e ciclo de amigos, imagens novas que ficarão gravadas na memória e o ar romântico de uma noite escura de verdade. Luz acendendo na esquerda, apagando na direita, uma verdadeira orquestra sem maestro que pude presenciar.

A luz voltou? Claro que a luz voltou! Junto com a energia elétrica milhares de explicações, apontamentos, deduções, todos querendo uma posição plausível, todos querendo saber o responsável. Porque, como é de praxe, as reclamações serão encaminhadas para o setor responsável.

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